TOCABARRO

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

AS RAZÕES DO OLEIRO Mauro Santayana (Folha de São Paulo, 30 de setembro de 1982)

A fama do oleiro corria por todo o Jequitinhonha e seus afluentes. Os potes de sua queima tiniam como se fossem de bronze, e neles a garapa esfriava de doer os dentes. De panelas e moringas, pouco dizer: disputavam-se nas feiras em leilão. Em Virgem da Lapa vi um fazendeiro dar 250 mil réis, do tempo do câmbio a 18, por uma moringuinha sapeca, cheia de flores de gravatá, de pintura difícil. No Rio do Prado, fazendeiro forte e de muita letra, José Amâncio me mostrou, entre cristais de Murano e louças de Limoges, a coleção de peças do velho oleiro, entre elas uma rara, de encomenda: jarra em forma de anjo, com a língua para fora, onde meu hospedeiro guardava seus ingredientes de ânimo: raízes de catuaba, de mamoninha-mansa e fava-roxa; glândulas secas de mocó-das-pedras (tiro e queda, segundo entendidos). Dizia José Amâncio que, dentro da vasilha, os recursos ganhavam mais força. "Prá dizer a verdade, é só olhar pra esse anjo safado, para arranjar disposição. O remédio já vem quente lá de dentro."

Com tanta fama e justo valor, andei anos na idéia de conhecer o homem, identificado na região como Medinho-Barrista. Mas não era fácil: Arquimedes Tomás de Braga Velho não cultivava as glórias deste mundo, e detestava qualquer raça de admiradores. "Ele não dá intimidade pra qualquer um"- me advertira José Murta, dito Zé Filó, que, quando menino, o conhecera já de cabelos brancos. "É melhor você chegar lá de desentendido. Faz de conta que está campeando outra coisa, que é vendedor de bíblia ou comprador de mel. Uma bestagem qualquer, para não dar na vista".

José Murta me deixou na encruzilhada entre Turmalina e Veredinha; daí tive que me arrumar com uma besta tão lerda e incompetente que merecia ser azêmola, alugada a cinco mil réis por dia, incluindo sela completa, mas de um estribo só, o do pé esquerdo, pra facilitar a montada; e, fora as esporas, que me custaram mais 400 réis por jornada.

Medinho descobriu logo que eu vinha com impostura, mas arriou o facho quando eu lhe dei notícias do que trazia no alforge: cachaça de Itacambira, de cana rosa, destilada em alambique de barro, na fazenda de Sebastião Lage. "Conheço o alambique. Fui eu que fiz.". Entrei na sua oficina de oleiro, bem na barranca do Rio Fanado, junto ao alvo barreiro de se servia. Um burro meditava enquanto circulava em volta do cilindro, amassando e amolecendo a argila. Quando deparou com a besta de aluguel, parou um pouco e os dois se olharam resignados.

Medinho mandou que arrumassem cama para estada de dois dias, e me disse que eu tinha mãos boas para mexer o barro. Pena que, na minha idade, não dava para apanhar jeito.

- Este ofício é bom - resumiu, servindo-me a cachaça em tigelinha faceira - porque, na verdade foi Deus que inventou. Só que Deus teve má sorte: em vez de coisas, fez gente.

Observei-lhe que, sem gente, para que as coisas? Medinho disse que Deus podia ter feito coisas para admirá-las, em lugar de modelar o homem, que deu no que deu.

- Você sabe que, na verdade, o que o oleiro faz é cobrir o vento, o nada, porque uma peça de barro é isso: uma separação no vazio. Eu quando estou trabalhando, não penso no vaso, na vasilha: penso no espaço que eu estou tapando. Não foi o que Deus fez? O que ele fez foi isso, mudar a forma do vazio. Ou não foi mesmo? Aí eu não penso no barro, mas como vai ficar o canto do lugar que eu vou cobrir.

Medinho me mostrou, depois, a sua colecção particular.

- Comecei no ofício aos 15 anos. Daqui a um mês faço 60. Tenho aí umas 16 mil peças, porque na Semana Santa não trabalho. Todos os dias, fiz uma peça diferente, só para mim, para guardar dentro dela, o ar de cada manhã. Nunca vendo o que faço com minhas mãos descansadas da noite. Deixo para meu proveito. Depois é a vez dos outros.

Tenho algumas peças de Medinho. Mas não estão à venda.

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