TOCABARRO

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

A mão, os dedos e o cérebro deles

(Tomei a liberdade de refazer o titulo)

........................... A filha (Marta) ainda teve tempo de lhe dizer, Não se irrite se não lhe sair bem à primeira. Horas atrás de horas, durante o resto desse dia e parte do dia seguinte, até à hora em que teria de buscar Marçal ao Centro, o oleiro fez e desfez e refez bonecos com figura de enfermeiras e de mandarins, de bobos e de assírios, de esquimós e de palhaços, quase irreconhecíveis nas primeiras tentativas, mas logo ganhando forma e sentido à medida que os dedos começaram a interpretar por sua própria conta de acordo com as suas próprias leis as instruções que lhes chegavam da cabeça. Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipulação, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos. Note-se que ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chamam elementares e complementarias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome. Ou talvez já o tenha, mas essas só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou dourado ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, como se estivessem a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade contudo, que na fulguração exaltada de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores, que já têm nome como os das que ainda o esperam, do mesmo modo que uma extensão de aparência lisa poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez. Marta disse-o de outra maneira, Já lhe apanhou o jeito.

José Saramago - A Caverna; pags. 82 - 84.

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