TOCABARRO

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Encontro de Ceramistas de Boassas
[OFICINA] Cerâmica Contemporânea centoecatorze

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Barro


É na terra que começa
Nessa amálgama de pó que se afeiçoa e é de barro
Arrancado pela enxada
Extensão de braço armado na dura luta pelo pão
Moldado pela nossa mão na roda tensa do oleiro
Os dedos dão forma à peça
Cada camada sentida
Cada vinco ou impressão
Em que a mão dá a forma à vida que é de enformar a mão
E a peça vai crescendo
Passo a passo
Em rotação
Pó da terra
Terra-mãe
A mão do homem-irmão

Rodando a roda do oleiro
Até ao fim do destino
Até nova rotação
Roda a roda do oleiro
É o bruto barro já peça
Pó da terra
Homem
Vida
Será cântaro
Promessa
Artes de levar comida a uma boca sem pão

... Era a história da terra
Antes de servir apenas para mais não ser do que chão.

Jorge de Castro

"Tem a cor da terra quem se esponja no barro." (ditado pop. Bras.)

“The pot is the man;
his virtues and vices
are shown therein -
no disguise is possible “ Bernard Leach

O pote é o homem;
suas virtudes e vícios
são mostrados nisso -
nenhum disfarce é possível

AS RAZÕES DO OLEIRO Mauro Santayana (Folha de São Paulo, 30 de setembro de 1982)

A fama do oleiro corria por todo o Jequitinhonha e seus afluentes. Os potes de sua queima tiniam como se fossem de bronze, e neles a garapa esfriava de doer os dentes. De panelas e moringas, pouco dizer: disputavam-se nas feiras em leilão. Em Virgem da Lapa vi um fazendeiro dar 250 mil réis, do tempo do câmbio a 18, por uma moringuinha sapeca, cheia de flores de gravatá, de pintura difícil. No Rio do Prado, fazendeiro forte e de muita letra, José Amâncio me mostrou, entre cristais de Murano e louças de Limoges, a coleção de peças do velho oleiro, entre elas uma rara, de encomenda: jarra em forma de anjo, com a língua para fora, onde meu hospedeiro guardava seus ingredientes de ânimo: raízes de catuaba, de mamoninha-mansa e fava-roxa; glândulas secas de mocó-das-pedras (tiro e queda, segundo entendidos). Dizia José Amâncio que, dentro da vasilha, os recursos ganhavam mais força. "Prá dizer a verdade, é só olhar pra esse anjo safado, para arranjar disposição. O remédio já vem quente lá de dentro."

Com tanta fama e justo valor, andei anos na idéia de conhecer o homem, identificado na região como Medinho-Barrista. Mas não era fácil: Arquimedes Tomás de Braga Velho não cultivava as glórias deste mundo, e detestava qualquer raça de admiradores. "Ele não dá intimidade pra qualquer um"- me advertira José Murta, dito Zé Filó, que, quando menino, o conhecera já de cabelos brancos. "É melhor você chegar lá de desentendido. Faz de conta que está campeando outra coisa, que é vendedor de bíblia ou comprador de mel. Uma bestagem qualquer, para não dar na vista".

José Murta me deixou na encruzilhada entre Turmalina e Veredinha; daí tive que me arrumar com uma besta tão lerda e incompetente que merecia ser azêmola, alugada a cinco mil réis por dia, incluindo sela completa, mas de um estribo só, o do pé esquerdo, pra facilitar a montada; e, fora as esporas, que me custaram mais 400 réis por jornada.

Medinho descobriu logo que eu vinha com impostura, mas arriou o facho quando eu lhe dei notícias do que trazia no alforge: cachaça de Itacambira, de cana rosa, destilada em alambique de barro, na fazenda de Sebastião Lage. "Conheço o alambique. Fui eu que fiz.". Entrei na sua oficina de oleiro, bem na barranca do Rio Fanado, junto ao alvo barreiro de se servia. Um burro meditava enquanto circulava em volta do cilindro, amassando e amolecendo a argila. Quando deparou com a besta de aluguel, parou um pouco e os dois se olharam resignados.

Medinho mandou que arrumassem cama para estada de dois dias, e me disse que eu tinha mãos boas para mexer o barro. Pena que, na minha idade, não dava para apanhar jeito.

- Este ofício é bom - resumiu, servindo-me a cachaça em tigelinha faceira - porque, na verdade foi Deus que inventou. Só que Deus teve má sorte: em vez de coisas, fez gente.

Observei-lhe que, sem gente, para que as coisas? Medinho disse que Deus podia ter feito coisas para admirá-las, em lugar de modelar o homem, que deu no que deu.

- Você sabe que, na verdade, o que o oleiro faz é cobrir o vento, o nada, porque uma peça de barro é isso: uma separação no vazio. Eu quando estou trabalhando, não penso no vaso, na vasilha: penso no espaço que eu estou tapando. Não foi o que Deus fez? O que ele fez foi isso, mudar a forma do vazio. Ou não foi mesmo? Aí eu não penso no barro, mas como vai ficar o canto do lugar que eu vou cobrir.

Medinho me mostrou, depois, a sua colecção particular.

- Comecei no ofício aos 15 anos. Daqui a um mês faço 60. Tenho aí umas 16 mil peças, porque na Semana Santa não trabalho. Todos os dias, fiz uma peça diferente, só para mim, para guardar dentro dela, o ar de cada manhã. Nunca vendo o que faço com minhas mãos descansadas da noite. Deixo para meu proveito. Depois é a vez dos outros.

Tenho algumas peças de Medinho. Mas não estão à venda.

A mão, os dedos e o cérebro deles

(Tomei a liberdade de refazer o titulo)

........................... A filha (Marta) ainda teve tempo de lhe dizer, Não se irrite se não lhe sair bem à primeira. Horas atrás de horas, durante o resto desse dia e parte do dia seguinte, até à hora em que teria de buscar Marçal ao Centro, o oleiro fez e desfez e refez bonecos com figura de enfermeiras e de mandarins, de bobos e de assírios, de esquimós e de palhaços, quase irreconhecíveis nas primeiras tentativas, mas logo ganhando forma e sentido à medida que os dedos começaram a interpretar por sua própria conta de acordo com as suas próprias leis as instruções que lhes chegavam da cabeça. Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipulação, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos. Note-se que ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chamam elementares e complementarias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome. Ou talvez já o tenha, mas essas só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou dourado ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, como se estivessem a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade contudo, que na fulguração exaltada de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores, que já têm nome como os das que ainda o esperam, do mesmo modo que uma extensão de aparência lisa poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez. Marta disse-o de outra maneira, Já lhe apanhou o jeito.

José Saramago - A Caverna; pags. 82 - 84.

AS LÁGRIMAS DO OLEIRO



Colocado fui na roda do Oleiro. Senti Seu toque poderoso e ressenti-me disso!

Ouvi então minha própria voz perguntando alto: mas – porque me fazes assim?

Olha – não podes tirar-me da Tua roda depressa? É que sofro imenso nela! Não estragues mais! Quanto tempo ainda cortarás de meu barro? E são cada vez mais os pedaços e mais longos os períodos! Quando isto vai terminar? Não vês que cortas em demasia e levas muito tempo?

Parece que por cada volta que Tua roda dá, uma pontada enorme me atinge e algo de mim some! Olha que dói! E agora já não posso ser mais como era e fico inferiorizado a cada volta que dou na Tua vontade, cada corte me atinge e danifica! Parece que me estás estragando em vez de arranjar. Olha, quando isto vai acabar? Quando, em Tua perspectiva, vou estar bem?

Logo senti a roda abrandando e fui colocado fora dela. Que alegria! Havia terminado uma obra-prima em mim. Mas senti algo salgado: umas lágrimas caindo as quais deixaram lá Sua marca.

José Mateus